terça-feira, 15 de setembro de 2015

Discute-se, sim!

Reproduzo o texto do professor Eloésio Paulo, Doutor em Letras pela Unicamp, professor da Universidade Federal de Alfenas (MG) e autor do livro Os dez pecados de Paulo Coelho (Ed. Horizonte).
"Em Roma se dizia: De gustibus non est disputandum. Todos conhecem o ditado, sempre usado para justificar todo tipo de ignorância e burrice. É uma evidente manifestação de obscurantismo considerar que algo possa estar acima de discussões, num mundo em que mesmo morais e religiões se tornam cada dia mais relativas e num país onde qualquer um pode xingar a mãe do presidente no meio da rua. Não adianta, mas pode. 
Defender a soberania do gosto individual é postular a renúncia de todos a compartilhar suas experiências. Teoricamente é possível haver tantos gostos como indivíduos. Apesar de muitos acharem isso politicamente incorreto, ainda existem pessoas que ensinam e pessoas que aprendem. E, assim como há alguns mais inteligentes ou mais honestos que outros, há também os que têm a sorte de ter nascido com maior sensibilidade e/ou de ter obtido, por meio da educação ou do convívio social, um gosto musical, por exemplo, mais apurado.
Pelo que se pode ouvir no rádio, na TV e em tudo que os ecoa, as pessoas capazes de ouvir música são uma espécie em extinção.
Mas o que vem a ser um gosto apurado? A palavra tem dois significados principais: purificado e aprimorado. O problema seguinte é estabelecer os critérios que balizam a diferença entre bom e mau gosto. Isso para quem não quer gastar seu preciosíssimo tempo lendo Kant e outros desocupados que se ocuparam da questão.
Como muitas coisas que parecem complicadas, no fundo a questão é muito simples: reduz-se ao binômio informação/desinformação. A capacidade de julgamento de alguém, em qualquer assunto, torna-se respeitável a partir do conhecimento que essa pessoa detém sobre aquele assunto. Não necessariamente um conhecimento formal, mas um repertório (atenção à palavra: repertório!) suficiente para permitir comparações. Em literatura, fica mais fácil perceber a grandeza de Machado de Assis comparando-o com Dostoiévski. Antes, é claro, precisa-se ler ambos.Q
ualquer indivíduo cujo aparelho auditivo funcione bem pode compreender inteiramente o caráter escatológico, digamos, de Bruno e Marrone (o exemplo rapidamente se deteriora, uma vez que os boqueteiros culturais lançam sucessivamente suas pragas com a velocidade das mamães camundongo). Basta poder compará-los a Plácido Domingo, João Gilberto ou Billie Holliday – aqui tomados como índices quase aleatórios de qualidade vocal, não ícones de valor absoluto. Quais podem ser os termos da comparação? Ora, são os elementos que compõem uma estrutura musical e sua manifestação propriamente acústica: melodia, harmonia, ritmo, estilo interpretativo. Exclua-se a beleza física e a roupa que a cantora use, ou não use, já que isso o ouvido não capta e, portanto, não pode ser considerado música.
Como escreveu J. Moraes num livrinho muito simples intitulado O que é música, o problema é que muita gente não ouve com os ouvidos e sim com outras partes do corpo. Se o som não passa de um pretexto para atividades correlatas ao impulso inconsciente de transmitir o próprio patrimônio genético, não se trata exatamente de música.
Assim como não se pode esperar espírito aberto da parte de um torcedor ou religioso fanático, também não se pode imaginar que um devoto de tal ou qual cantor se disporá a discutir as bases de sua devoção, a qual, aliás, costuma mudar assim que determine a agenda do Faustão ou o calendário de festas juvenis. Sim, algumas dessas devoções persistem por muitos anos, mas só quando o devoto apresenta qualquer paralisia no desenvolvimento da personalidade, por algum motivo estacionado afetiva e intelectualmente nas alturas da puberdade.
Mas por que as escolas e a imprensa, que discutem a qualidade do ar que respiramos e a do leite que bebemos, dão como certa a normalidade do gosto musical vigente? A função dessas instâncias legitimadoras é mostrar às pessoas todos os ângulos da realidade. Por isso tal discussão deveria ser constante nestes tempos em que a industrialização desenfreada de estruturas musicais bisonhas é o instrumento privilegiado de nivelamento intelectual da juventude. Nivelamento por baixo, e, o que é pior, acompanhando pela imensa maioria dos adultos. Nada é mais eficiente que esses produtos primários, associados ao brilho enganoso das imagens televisivas, para formar e manter indivíduos acomodados ao papel de consumidores dóceis e previsíveis. É preciso lembrar que isso se estende à qualidade mental do exercício da cidadania, uma vez que os políticos já há muito se apresentam descaradamente como produtos sem qualquer lastro que não a exposição midiática, a manipulação de sua imagem de maneira a satisfazer a expectativa simbólica da maioria esteticamente desinformada e existencialmente desesperada. O tripé rádios/gravadoras/redes de TV é a fábrica de mitos de uma cultura que se desintegrou por privilegiar os objetivos lucrativos em detrimento de outros, possíveis porém mais difíceis de processar.
Para compreender o quanto pode a música é preciso ter alguma disposição para informar-se ao menos um pouco acerca da natureza da arte, e mesmo das circunstâncias históricas de sua industrialização. E quantas escolas se encarregam de mostrar a seus alunos que a história da arte não começou com Chitãozinho e Xororó? Quantos professores estão aparelhados para discutir noções básicas de estrutura musical ou, mais simples ainda, a originalidade das letras de canções?
A inteligência ainda é o melhor guia. Qualquer pessoa armada de disposição, gastando algumas horas do seu tempo livre para conhecer diversos estilos de música, perceberá facilmente: o que toca no rádio, na TV e nas instâncias que os ecoam é puro lixo e seus produtores não ganham fortunas por acaso, pois executam muito bem o serviço de enquadrar o produto musical em fórmulas compreensíveis por qualquer ameba; além disso, desempenham em tempo integral o papel de animadores de si mesmos, não raro com o auxílio de um certo pó branco. Já para ouvir Mozart, jazz ou canções populares produzidas fora do círculo do boquete cultural, é necessário ter um mínimo de informação e sensibilidade. Quem não conhece amplamente uma gama de fenômenos é bem capaz de pensar que só existem aqueles poucos que cabem no próprio entendimento. Ou: se a burrice é o oxigênio que se respira, logo deve ser a normalidade.
Deve ser por isso que o estudo da história tem tão pouco prestígio nas escolas. Conhecer o passado é a maneira mais segura de testar a pretensa normalidade do presente.
A propósito de Mozart, já foi demonstrado em pesquisas confiáveis que ouvir suas composições ajuda a desenvolver a inteligência lógica. O cérebro, por assim dizer, absorve por osmose as estruturas lógicas de pensamento que subjazem à música mozartiana. Imagine-se o efeito contrário para os ouvintes de tatibitates com grau protozoário de elaboração. Há quem nem desconfie disso, mas a música, além de expressão da sensibilidade, é matemática. Muito coerente um garoto detestar tabuada e adorar hip-hop.
Existe uma velha piada sobre a maneira certa de diferenciar um gato de um tijolo: jogue os dois na parede, o que miar é gato. O mesmo raciocínio vale para a música: ouça Jesus, alegria dos homens, de Bach, ou uma daquelas interpretações que justificam comparar Elis Regina a Ella Fitzgerald; depois, contraponha a qualquer desses clones anticulturais que se sucedem de dois em dois meses no pódio da evidência boqueteira. Finalmente, responda em segredo, só para si mesmo: não existe algo de muito errado com quem diz que essas porcarias são música? 
A mesma razão pela qual devemos, se possível, avisar a um amigo que ele está prestes a ser atropelado manda quem ainda tem ouvidos tentar mostrar, à maioria ensurdecida, de onde vem a música. A realidade é um duro encargo para quem dela toma conhecimento; acarreta a responsabilidade de lutar contra a incapacidade alheia de percebê-la. Dá muita vontade de ficar quietinho ouvindo o que gosto de ouvir. Mas o ruído é demasiado."
Sou tentado a dizer que esse texto é definitivo. Para quem tem cérebro de pensar...