Reproduzo o excelente texto do jornalista Matheus Pichonelli, do Yahoo, do dia 5 de novembro de 2014. Diante do bombardeio que sofre o atual Governo de setores da Imprensa, quando se é questionado e criticado sobre posicionamentos o tempo todo, o artigo expõe o que se espera de um cidadão diante da crise (real ou imaginária).
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comunista
O nó ficou maior quando a candidata de Esquerda recém-reeleita passou a
busca no mercado um nome para compor seu Ministério da Fazenda. Ou quando o seu
Banco Central, e não o dos adversários, elevou a taxa básica de juros para
frear a inflação. A mesma presidenta, ao voltar de férias, teceu elogios ao
neoaliado PSD, partido criado por Gilberto Kassab, que já declarou não ser nem
de Direita nem de Esquerda nem de centro nem muito pelo contrário.
Os sinais trocados são amostras de um período que, na melhor das hipóteses,
dissolve a narrativa entre progressistas e conservadores, e, na pior, coloca Esquerda
e Direita no mesmo balaio. A sensação é enganosa, e demonstra a urgência de se
definir posições para além dos rótulos.
Nesse sentido, a última eleição foi peculiar: se entre os candidatos as
propostas eram irritantemente parecidas, entre os eleitores a dicotomia se
radicalizou e consagrou estereótipos. De um lado, colocou conservadores,
moderados, liberais, alienados e reacionários no mesmo barco – o que é um
grande erro. De outro, transformou qualquer militante de Esquerda em um jovem
com a camisa do Che Guevara, ideias ingênuas sobre a bondade dos homens e
cínico o suficiente para pedir a democratização da mortadela enquanto come
caviar. O repertório do deboche, cada vez mais pobre, tornou ainda mais difícil
a tentativa de posicionamento, quase sempre contestada sob os selos de
“coxinha”, “reaça”, “golpista”, “bolivariano” ou “chapa-branca”.
Não sei exatamente como a Direita fará para se posicionar dentro do campo e
mostrar, por exemplo, que os integrantes da marcha-a-ré, que já pedem o
impeachment da presidenta Dilma Rousseff e levantam a bandeira da intervenção
militar, falam por si e não pela oposição. Mas as perguntas são legítimas:
estar à direita, hoje, é rejeitar a criação de conselhos populares, pedir o
retorno ao nosso período mais obscuro, ouvir o Lobão, contestar o sistema de
votação (o mesmo que, no estado mais rico, elege o mesmo partido para o mesmo
posto há exatos 20 anos) e colocar em dúvida a independência dos Três Poderes?
É contestar os mecanismos de aperfeiçoamento da democracia usando países
vizinhos como régua para confundir alhos, bugalhos, contextos e experiências?
A resposta está em aberto, mas não creio que a Esquerda esteja livre de
questionamentos similares. Caso contrário ela será confundida, a partir da
campanha, como um espaço propício aos adeptos do culto à personalidade, que fingem
não ver a parte vazia do copo meio-cheio e ajudaram a transformar a eleição
presidencial numa grande gincana do Xou da Xuxa, quando
meninos torciam pelos meninos e meninas, pelas meninas.
Por isso é preciso, para além dos estereótipos, deixar claro o que é ser Esquerda
hoje. A se fiar pelas manifestações pré e pós-eleição, cabe à Esquerda, por
exemplo, se contrapor ao delírio coletivo com uma bandeira aparentemente
simples: a consciência histórica, ferramenta básica para entender contextos e
refutar apelos a experiências autoritárias de um passado mal esclarecido. A Esquerda
que eu conheço, afinal, não tem saudade de tempos remotos. O que para muitos
era paz e tranquilidade no passado, para a Esquerda era genocídio indígena,
escravidão e opressão.
Diferentemente dos saudosos do regime
civil-militar, a Esquerda que eu conheço, com a qual me identifico e sempre me
identificarei, apoia as comissões da verdade, para que as atrocidades não
voltem a acontecer. E não, a Esquerda que eu conheço não ignora as atrocidades
dos regimes comunistas e não milita em sua defesa. Não relativiza os crimes de
Stálin nem coloca Fidel Castro entre Cristo e o Império. Ela tem a plena noção
do anacronismo de um regime fechado, boicotado e sufocado – e a solidariedade
com a população local não a impede de rejeitar os convites para se mudar para
lá de mala e cuia. Nem de aceitar a sua ajuda no atendimento básico em nossos
rincões desprezados pelos doutores locais. O que não faltam são motivos para
ficar.
A Esquerda que eu conheço não tem saudade de quando podia trocar migalhas
por serviço braçal, e isso confere a ela uma outra diferença básica em relação
à Direita: ela é menos apegada a alguns imperativos aparentemente inegociáveis.
Por exemplo, a maioria deles não quer ser servida por empregados. Não quer
enriquecer. Não quer morrer sufocada na mesma empresa. Não quer se enforcar
para pagar o carro ou a viagem do ano. Carro, aliás, não é assunto nem fetiche:
é um meio. Um meio, se possível, dispensável. Assunto mesmo é espaço público,
direito à cidade, humanidade das calçadas. Por isso seus militantes vão às ruas
quando o sistema de transporte coletivo falha ou quando ciclistas são
atropelados como se fossem papel. Não significa que não gostem de carros nem de
viagens nem de bons restaurantes: apenas querem que todos caminhem e que todos
se alimentem. Privilégio, para eles, é ofensa, não meta de vida. Segurança não
é paranoia para justificar a própria demofobia. Ou a misoginia. E pessoas não
valem menos do que oportunidades de negócio.
Os meus amigos da Esquerda se questionam o tempo todo sobre seu trabalho.
Questionam se estão fazendo a coisa certa, no tempo certo, por que e para quem.
Meus amigos têm dúvidas. O trabalho não é o meio para a auto-consagração; é um
meio para mudar, se não o mundo, a cidade, o bairro, o quarteirão, a casa. Eles
não querem apertar o botão na fábrica para construir o sapato. Querem saber
para onde vão os sapatos e quais os impactos da fabricação dos sapatos ao seu
redor. Meus amigos de Esquerda não veem necessidade de optar entre
desenvolvimento e mundo sustentável: eles sabem que sem este último não haverá
outra opção. Para além do lucro imediato, sabem que a destruição das florestas
é a explicação direta para os períodos de estiagem, e não a má vontade dos
santos.
A Esquerda que eu conheço não está satisfeita com o mundo que recebeu nem
quer pegar em armas para que tudo fique como está. Ficar
como está significa prender alguns e libertar outros; enriquecer
outros e dilapidar uns. É aceitar um país branco nas escolas e universidades e
um país negro e moreno em roupas de empregado. É aceitar, sobretudo, as roupas
de empregado. É aceitar que só alguns podem andar de mãos dadas com quem quiser
e onde quiser. É aceitar que só alguns podem ser levados a sério no trabalho. E
que só alguns, e não algumas, podem circular nas ruas sem risco de ter o corpo
dilapidado.
A Esquerda que eu conheço é a Esquerda que respeita as minorias. Que levanta
as bandeiras LGBT. Que desconfia da paz selada pela bala de borracha no centro
ou pelas balas de verdade nas periferias. Que vê a dependência química como
questão de saúde pública e não de polícia. Que não aceita intervenção de Estado
e Igreja em corpos alheios – e sabe que corpos alheios são corpos alheios, e
não propriedade. Que aceita a liberdade de credo e não de ódio. Que não aceita
troça sobre crença, postura ou desejo. Que vê a vida como algo mais tênue, mais
tenso e mais intenso do que simplesmente prosperar, construir muros, garantir o
seu, apodrecer. A vida, para eles, pode e
deve ser mais interessante do que viajar para a Disney e tirar fotos com o
Pateta.
São muitos os pontos, e este post não
tem a menor pretensão de servir como manifesto. É só uma reação à tentativa de
transformar projetos de vida em sentidos pejorativos ou autoritários. Diante da
Direita enlouquecida, que na falta de argumento começa a ver fantasma debaixo
da cama, é dessa Esquerda que espero luminosidade. Essa luminosidade não virá
com berros, sofismas, reducionismos, intolerância, provocações ou convite para
pegar em armas. Os golpistas são os mesmos, mas os tempos são outros. Ser Esquerda
hoje é, sobretudo, compreender o contexto. Mas é também não se conformar.
Enquanto houver tanta assimetria entre iguais, haverá pouco a comemorar e muito
a ser feito. A começar dentro de casa."
Para se refletir.
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